terça-feira, 16 de julho de 2013

O REGIME DE AFETAÇÃO PATRIMONIAL NAS INCORPORAÇÕES IMOBILIÁRIAS


Resumo: O patrimônio de afetação, apesar de ser tema de frequente exposição em debates sobre o direito registral imobiliário, apresenta-se na conjuntura atual de forte aquecimento do mercado imobiliário como matéria de expressivo interesse e relevância para a pesquisa acadêmica jurídica e econômica. No presente, optou-se por visão distinta da costumeira, trabalhou-se com críticas aos institutos propagados como substitutivos para a afetação de patrimônio da incorporação. Adotou-se, também, pesquisa avançada em campo determinado, o que confirmou a indução já propagada. Com a consequente conclusão pela baixa utilização do mecanismo, forçoso foi advertir que inovações legislativas são necessárias.  O escopo deste trabalho é dar roupagem atual à discussão sobre o tema, com confrontos inevitáveis e inéditos e realizar o enfrentamento do problema da ausência de obrigatoriedade e baixa utilização do instituto. O método utilizado no presente é o dialético-argumentativo. O principal resultado almejado é propiciar ao leitor uma visão global e crítica das finalidades do instituto e implicações no segmento correlato.

Palavras-chave: Incorporação imobiliária. Afetação patrimonial. Segurança. Registro de Imóveis.

Sumário: Introdução. 1. Escorço Histórico e Fundamento Fático. 2. Objetivos, Críticas e Características Gerais do Patrimônio de Afetação. 2.1. Da vocação da incorporação para a afetação. 2.2. Da facultatividade do regime de afetação. 2.3. Da impropriedade do artigo 9º da Lei n. 10.931/04. 2.4. Diagnóstico da porcentagem da utilização do patrimônio de afetação. 3. Instrumentos e Alternativas Divulgadas. 3.1. Sociedades de propósito específico – SPE. 3.2. Seguros de término e entrega de obra. 3.3. Diagnóstico e aconselhamento do setor. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO
Durante a década de 1990 grandes abalos na estrutura da construção civil brasileira ocorreram em virtude de grandes construtoras e incorporadoras terem a respectiva falência decretada, o que causou consideráveis prejuízos para a economia nacional e para a segurança do sistema de aquisição imobiliária.
O caso com maior repercussão nacional é o da Encol S/A, incorporadora e construtora sediada na cidade de Goiânia, Estado de Goiás, mas que contava com empreendimentos por praticamente todo o Brasil. Contudo, não fora a única a passar por tal situação, diversas outras incorporadoras e construtoras não realizaram gestão adequada e a falência foi consequência direta, exemplo disso no Estado de São Paulo é a Incorporadora BHM, a qual não concluiu diversos empreendimentos por Campinas e região.
Em decorrência dos casos de quebra sucessivos, diversos adquirentes de unidades imobiliárias tiveram seus sonhos frustrados e economias perdidas, diversos são os “esqueletos” de empreendimentos dessas sociedades hoje ainda tomados por invasores e sem perspectivas de resolução.
Como previsível, com a falência e atribuição do juízo universal não houve saldo para distribuição entre os empreendimentos e concretização dos mesmos, na verdade aconteceu o contrário, não são raros os casos de pessoas que estavam completamente adimplentes com o valor estabelecido para a aquisição do respectivo imóvel que necessitaram de angariar outros recursos para concretização da obra e, ainda, não conseguiram a respectiva quitação perante a seguridade social, o que gera o impedimento para averbação da construção perante o Serviço de Registro de Imóveis respectivo.
 Pois bem, diante de tal contexto, buscou-se alternativa de regime para impedimento de situações equivalentes. Juntos, estudiosos da área, legisladores e representantes do segmento da construção civil, traçaram projetos de lei que culminaram com aprovação do regime de patrimônio de afetação perante o Congresso Nacional, regime este inserto na Lei n. 10.931/04, mas que adicionou dispositivos à Lei de Incorporações – Lei n. 4.591/64.
De indiscutível relevância, o regime alternativo estabelecido a partir desse panorama é a matéria que se pretende examinar nesse artigo, já que além dos aspectos legislativos e procedimentais há dúvidas a serem solucionadas: Este regime tem sido aplicado? O legislador pecou por conferir discricionariedade ao invés de obrigatoriedade?
A partir das breves delimitações caracterizadoras, ter-se-á a resposta com os fundamentos para tanto.
Adianta-se que a conclusão não é animadora, há sim o problema de baixa utilização do instituto, pois a organização necessária do setor é vista como entrave administrativo e não há planejamento em longo prazo para que estas dificuldades iniciais sejam minimizadas com o inexorável avanço do tráfico imobiliário decorrente da segurança jurídica alcançada pelos futuros adquirentes.
Ademais, mergulhando no objetivo de segurança econômica imobiliária, as comparações serão inevitáveis. Necessário será exprimir breves linhas dos seguros de término e entrega de obra, bem como pinceladas sobre as sociedades de propósito específico, as quais altamente em moda.
Não se tem a pretensão de esgotar o tema, mas o objetivo do presente é a reflexão. Reflexão sobre os aspectos, reflexão sobre os objetivos, reflexão sobre a história e, timidamente, reflexão sobre o futuro da construção civil no país.

1. ESCORÇO HISTÓRICO E FUNDAMENTO FÁTICO
Em 16 de março do ano de 1999 o cenário da construção civil brasileira foi bruscamente modificado, era decretada a falência da Encol S/A – Engenharia, Comércio e Indústria e também a prisão preventiva do seu controlador. Uma das maiores construtoras do Brasil, a Encol deixou mais de 42.000 (quarenta e duas mil) famílias prejudicadas em mais de 7.000 (sete mil) empreendimentos inacabados por todo o país, a razão para a quebra decididamente fora o reflexo do desaquecimento da economia nacional e diminuições das intervenções governamentais após o Plano Real, bem como a má gestão, demonstrada, inclusive, durante a fase de concordata anterior à falência, conforme informa Caramuru Afonso Francisco (FRANCISCO, 2005, p.67).
Sabe-se que realização do prejuízo não ocorreu apenas para os milhares de prejudicados diretos, mas sim para todo o sistema imobiliário brasileiro.
Em virtude da atuação continental da referida sociedade, tornou-se necessária a revisão do sistema vigente e a tipificação de alternativas, de forma que se evitassem transtornos sucessivos.
Com o apoio e pressão de diversas áreas e em reflexo de diversos projetos de lei apresentados por parlamentares, adveio a Medida Provisória 2.221, em 04 de setembro de 2001, inserindo dispositivos na Lei n. 4.591/64, os quais correspondiam à criação da possibilidade de adoção de patrimônio de afetação nas incorporações brasileiras.
A esperada inovação trouxe os postulados básicos para a segurança desejável, ou seja, patrimônio e contabilidade apartada por empreendimento, com o controle e ingerência dos adquirentes, através da Comissão de Representantes.
Entretanto, deixou-se ao exclusivo arbítrio dos incorporadores a adoção ou não do sistema, tratava-se, portanto, de alternativa e não de obrigatoriedade.
No ano de 2004, surgiu a Lei n. 10.931, a qual revogou a Medida Provisória 2.221, todavia sem maiores avanços.
O procedimento de destaque continuou similar e a criticada faculdade não se tornou obrigatoriedade, apenas foram positivados benefícios fiscais para os aderentes, conforme pode ser extraído dos dispositivos 1º e 2º da Lei, in verbis:
“Art. 1o Fica instituído o regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação.
Art. 2o A opção pelo regime especial de tributação de que trata o art. 1o será efetivada quando atendidos os seguintes requisitos:
I - entrega do termo de opção ao regime especial de tributação na unidade competente da Secretaria da Receita Federal, conforme regulamentação a ser estabelecida; e
II - afetação do terreno e das acessões objeto da incorporação imobiliária, conforme disposto nos arts. 31-A a 31-E da Lei no 4.591, de 16 de dezembro de 1964.”
Segundo Hércules Aghiarian (2004), no tocante ao benefício tributário, há estudos que apontam economia entre 7% (sete pontos percentuais) e 15% (quinze pontos percentuais) anuais, todavia os procedimentos específicos e a contabilidade apartada, bem como o despreparo operacional, minoram essa vantagem orçamentária. É certo que os críticos contrários à faculdade da adoção não o fazem sem sapiência, pois a lacuna continua como a seguir será demonstrado.

2. OBJETIVOS, CRÍTICAS E CARACTERÍSTICAS GERAIS DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO
O artigo 53 da Lei n. 10.931/04 inseriu os artigos 31-A usque 31-F na Lei n. 4.591/64, colocando logo de início que:
“A critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime da afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes.”
Os dispositivos seguintes caminham na mesma linha, ou seja, adotando-se o regime especial de afetação do patrimônio ao empreendimento correlato, ter-se-á recursos próprios, débitos próprios, com a consequente contabilidade própria, buscando evitar que o insucesso de determinada atividade gere cadeia desastrosa.
A lei repete taxativamente que os recursos da determinada incorporação somente responderão pelos débitos correlatos, frisando que o incorporador é responsável pelos danos que causar ao patrimônio apartado.
Em consonância com o sistema de atividade que visa lucro, a lei exclui da afetação os recursos que sobejarem após a conclusão da obra com a respectiva averbação da construção, bem como o valor da fração ideal do terreno, no caso de incorporação para construção sob os regimes legais (empreitada ou administração).
Perante a serventia de registro imobiliário o procedimento correto para a adoção do regime é a apresentação de instrumento particular firmado pelo incorporador e, quando for o caso, também pelos titulares de direitos de aquisição sobre o terreno, o qual será objeto de averbação na competente matrícula, obviamente após o registro da incorporação, sendo praxe a apresentação do termo juntamente com a documentação prevista no artigo 32 da Lei n. 4.591/64, mas não há obstáculo para posterior opção.
Importantíssimo é o papel da Comissão de Representantes diante deste panorama, pois a mesma, juntamente com eventual instituição financiadora, poderá nomear pessoa natural ou jurídica para fiscalizar o patrimônio afetado e o incorporador, no mínimo trimestralmente, deverá a ela prestar contas, entregando demonstrativo do estado da obra e a correspondência com os recursos apurados no período.
O diploma enumera, em relação meramente exemplificativa, as diversas obrigações do incorporador, sendo exemplos delas:
a) Preservação dos recursos necessários à conclusão da obra;
b) Manutenção em apartado dos bens e direitos objetos de cada incorporação;
c) Manutenção e movimentação dos recursos financeiros em conta de depósito específica da respectiva incorporação;
d) Contabilidade apartada, entre outros.
No caso de falência da sociedade incorporadora ou insolvência civil do incorporador, não será atingida a incorporação objeto da afetação, não sendo passíveis de arrecadação pelo juízo universal dos bens e direitos do empreendimento. Novamente há papel diferenciado a ser adotado pela Comissão de Representantes, os adquirentes deverão, nos 60 (sessenta) dias seguintes, realizar uma assembleia geral na qual firmarão o instrumento de instituição do condomínio da construção, confirmarão o mandato dos membros da Comissão de Representantes ou elegerão novos membros e deliberarão pelo prosseguimento da obra ou pela liquidação do patrimônio de afetação, prerrogativa confirmada pelo diploma vigente de falência e recuperação da sociedade empresária e do empresário – artigo 119, IX, da Lei n. 11.101/05.
Na hipótese de decisão por conclusão da obra, deverão ser alienados, através de leilão extrajudicial, as unidades habitacionais ainda não comercializadas pela incorporadora, para que o produto seja destinado ao pagamento das dívidas e continuidade das obras. A Comissão de Representantes será a responsável pela contínua arrecadação das prestações a serem destinadas à obra.
Ressalta-se que o pagamento de dívidas, apesar de não atingidas pelo juízo universal, deverá seguir a ordem legal e caso existam lucros, os mesmos deverão ser remetidos à massa.
Todavia, caso a assembleia-geral decida pela não continuidade da obra, a Comissão de Representantes realizará a alienação do ativo afetado. Com o produto, quitará os créditos na ordem legal de preferência e, em seguida, restituirá os adquirentes dos valores adimplidos e, caso reste valor positivo, remeterá o saldo à massa.
A extinção natural do regime de afetação ocorre mediante conclusão da obra (habite-se e averbação da construção), com a respectiva entrega das unidades imobiliárias aos adquirentes e quitação de eventual financiamento. Haverá, ainda, extinção na situação de deliberação da assembleia-geral pela liquidação da incorporação e também no caso de período de carência estabelecido, havendo retrato e devolução das quantias devidas.
Vale frisar a natureza jurídica da afetação disposta como universalidade de fato, pois, como leciona Caramuru Afonso Francisco:
“A universalidade de fato é a pluralidade de bens singulares que, pertencentes à mesma pessoa, têm destinação unitária. In casu, o patrimônio de afetação é composto de bens, direitos e obrigações que pertencem aos adquirentes das unidades imobiliárias e aos titulares de direitos reais de aquisição e da garantia sobre o terreno e as unidades imobiliárias, administradas pelo incorporador e/ou construtor, que estão reunidos por força do exercício da atividade empresarial de incorporação”. (FRANCISCO, 2005, p.71)
Sobre as características vantajosas do sistema, é importante destacar as lições de Melhim Namem Chalhub in verbis:
“A teoria da afetação se ajusta com perfeição como instrumento de preservação dos direitos dos adquirentes, até porque a captação que opera tem destinação específica, que é a própria construção. A afetação dará efeito prático aos mecanismos de controle e fiscalização das incorporações imobiliárias, mediante criação de reserva patrimonial destinada à conclusão da obra e entrega aos adquirentes, bastando ver que, se as incorporações já fossem objeto de afetação, os adquirentes da Encol não sofreriam os prejuízos de que são vítimas”. (CHALHUB, 2000)

2.1. Da vocação da incorporação para a afetação
A incorporação, nos dizeres da própria lei de regência – artigo 28, parágrafo único, é atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas. Dessa feita, o objeto em análise é a gestão de fatores para realização do empreendimento imobiliário, consistindo na alienação das unidades ainda em construção.
Visa-se lucro, pois. Consiste na captação de recursos do público e sua aplicação em determinada obra e, por conseguinte, é instituto apto na origem para a afetação, já que a gestão dos fundos de terceiros visando lucro há clara presunção da realização da atividade com suas próprias forças.
Ainda aproveitando as lições do insigne Melhim Namem Chalhub, tem-se, corroborando com o entendimento supra, que:
“O conjunto de peças que compõem o Memorial confere identidade própria a cada incorporação, que a distingue dos demais empreendimentos da empresa incorporadora, circunstância que torna cada incorporação única e inconfundível; o Memorial delimita com clareza o núcleo patrimonial a afetar e evidencia sua capacidade de gerar receita suficiente para a completa realização da obra, com autonomia em relação a outras fontes de receita da empresa incorporadora”. (CHALHUB, 2008, p.10.)
Dessa feita, o objetivo de lucro, que gera a presunção de autossustentação financeira, e a infungibilidade do objeto tornam a atividade de incorporação destino direto de afetação natural, como ocorre em diversos casos da economia, tais quais fundos de investimento, situações especiais de bem de família e afins.

2.2. Da facultatividade do regime de afetação
Como pode ser absorvido de todo o exposto, a teleologia da inovação legislativa era a proteção dos adquirentes para a concretização de regime de apartação dos recursos de cada empreendimento distinto, para concretização de sistema protetivo e de segurança econômica.
Em contramão do esperado, a facultatividade tornou inócua a previsão, descartando-se a concepção original do anteprojeto do Instituto dos Advogados Brasileiros e outros quatros Projetos de Lei apresentados na Câmara dos Deputados.
A criação de vantagens fiscais por si só não fora suficiente para otimizar a busca por tal sistema, já que, como antes frisado, a contabilidade apartada, a organização operacional e outros aspectos tributários pesam mais antes da opção pelo sistema.
A própria dogmática da atividade já induz à necessidade de afetação compulsória. Há gestão de capitais de terceiros, há hipossuficiência de parte, há diferentes níveis de rentabilidade em cada empreendimento, deveria haver, portanto, o sistema de freios e contrapesos para minorar diferenciações, deveria ser posto controle e diretrizes mais sólidas, era este o espírito da proposta legislativa e o anseio popular.
Ao atribuir faculdade não se realiza o ajuste adequado no mercado, não se protege os adquirentes e não poupa o sistema econômico de falhas em gestões, concede-se vantagem exagerada ao incorporador sem sobreposição do bem comum. A livre iniciativa e o livre mercado são festejados pelo liberalismo, contudo a modernidade e as crises brasileiras e mundiais trazem a inexorável necessidade de controle e de ajustes para que o bem comum seja preservado, postulado este do vigente Estado Social.
Em análise de todo o sistema não há nada que justifique a liberalidade, muito pelo contrário, tudo caminha para a conclusão de erro legislativo pendente de reforma.
A afetação fomentada da forma como foi não surtiu resultados, imprescindível, então, a cogência do sistema para impedimento de transtornos futuros.

2.3. Da impropriedade do artigo 9º da Lei n. 10.931/04
Entre as críticas da doutrina especializada sobre o regime jurídico do patrimônio de afetação, duas são flagrantes e consensuais: a primeira diz respeito a não obrigatoriedade da adoção do sistema, o que foi tratado no item anterior; já a outra aborda o disposto no artigo 9º da Lei 10.931/04, o qual é reproduzido a seguir:
“Art. 9o Perde eficácia a deliberação pela continuação da obra a que se refere o § 1o do art. 31-F da Lei no 4.591, de 1964, bem como os efeitos do regime de afetação instituídos por esta Lei, caso não se verifique o pagamento das obrigações tributárias, previdenciárias e trabalhistas, vinculadas ao respectivo patrimônio de afetação, cujos fatos geradores tenham ocorrido até a data da decretação da falência, ou insolvência do incorporador, as quais deverão ser pagas pelos adquirentes em até um ano daquela deliberação, ou até a data da concessão do habite-se, se esta ocorrer em prazo inferior”.
Percebe-se que o criticado dispositivo estabelece como lapso para pagamento de todos os débitos trabalhistas, previdenciários e tributários 1 (um) ano a partir da deliberação da assembleia-geral de adquirentes ou a concessão do habite-se, se ocorrer em prazo inferior. Caso não ocorra, a consequência é a extinção do patrimônio de afetação e a arrecadação pelo juízo universal dos créditos e débitos correspondentes.
Tal regra é inconcebível diante da sistemática aplicável, tanto para os adquirentes das unidades, quanto para os eventuais credores, já que é cediço que a decisão pela continuidade da obra, apesar da aquiescência e boa vontade de todos os adquirentes, gera desconfortos financeiros que em muito atrasam o cronograma inicial, bem verdade é que poucas são as incorporações que findam ou resgatam saldo no prazo de 12 (doze) meses. Como, então, estabelecer que se não quitadas todas as dívidas trabalhistas, fiscais e previdenciárias (em lapso inteligível) o sistema concebido será desfeito e as garantias daquele terão o mesmo fim?
Ora, o próprio §11 do artigo 31-F traz disposição em sentido contraposto, coloca o artigo que os adquirentes estão sub-rogados nos direitos e obrigações do incorporador, responsáveis, portanto, serão pelo adimplemento das obrigações correspondentes. Ademais, o patrimônio afetado, somente ele, deve responder pelas obrigações contraídas para cumprimento de sua finalidade, esta é a teleologia do construído.
Não se pode conceber tamanha falta de linearidade do sistema, não há alternativa do que repetir o proposto por grande parte dos estudiosos da área: Há de ser revogado o artigo 9º da Lei n. 10.931/04 para unidade e inteligência do sistema.

2.4. Diagnóstico da porcentagem da utilização do patrimônio de afetação
Buscando números aproximados para medição da utilização do sistema, realizou-se pesquisa perante Serviços de Registro de Imóveis alocados nas cidades de Campinas – SP, São Paulo – SP, Curitiba – PR e Belo Horizonte – MG. Apesar da pequena amostragem perante a enormidade e diversidade territorial brasileira, a conclusão veio de encontro com as previsões: Os melhores números apontaram para 2% (dois pontos percentuais) das incorporações registradas, ou seja, nas melhores hipóteses apenas duas em cada cem incorporações optaram pelo regime de afetação.
Vislumbra-se também que, em regra, as opções foram efetuadas por incorporadoras de recente constituição e com baixo número de VGV (valor geral de vendas) no mercado.
De tal forma, incorporadoras com maior participação no mercado ficam alheias a esse movimento, demonstrando que a redução fiscal propiciada pela Lei não é vantajosa perante a necessidade de contabilidade apartada e controle contínuo da Comissão de Representantes, bem como ante a imposição de organização administrativa, o que corrobora com o entendimento de que apenas haverá consecução do objetivo legal com a obrigatoriedade de adoção do sistema, ao invés da discricionariedade vigente.

3. INSTRUMENTOS E ALTERNATIVAS DIVULGADAS
Em tempos de grandes aquisições e fusões de incorporadoras, além das crescentes aberturas de capitais, muito é falado sobre as sociedades de propósito específico (SPE) e sobre os seguros de término e entrega de obra exigidos por agentes financiadores.
A ausência de informação ou a informação inadequada gera dúvidas quanto à efetividade de tais instrumentos e a suposta fungibilidade entre eles e o patrimônio de afetação.
Como se verá, entre eles não há unidade e tão pouco iguais garantias, continuando ser a afetação de patrimônio a alternativa mais adequada para conter abusos econômicos e para fins de proteção aos adquirentes.

3.1. Sociedades de propósito específico - SPE
O direito comercial brasileiro e os tipos societários existentes são aptos suficientemente a receber alterações para finalidades específicas do mercado.
Notadamente as sociedades limitadas e sociedades anônimas são construções capacitadas para ingerências e acomodações requeridas, pois dentre os modelos tipificados possuímos infinidades de conjugações, tais quais prazo determinado, objeto social extenso ou enxuto, unipessoalidade temporária e afins.
Nessa esteira, procurou-se nomear diferentemente algo já existente, ou seja, foi dado o nome de Sociedade de Propósito Específico para a sociedade cujo objeto social é limitado e o prazo de duração exaurido com a consecução dos seus fins.
Trata-se de instrumento com objetivo idêntico ao instituto norte-americano da joint venture, qual seja a união de pessoas, com a combinação de insumos, para fins de execução de uma única ação empresarial e, muitas vezes, com prazo limitado à consecução. No que tange à previsibilidade no direito brasileiro, a obrigação de formação de consórcio específico entre os proponentes para atendimento do objeto já estava prevista na redação originária da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n. 8666/93).
Entretanto, foi apenas com o advento da Lei n. 11.079/04 (diploma das Parcerias Público-Privadas – PPP) que a Sociedade de Propósito Específico – SPE foi exatamente assim nomeada e interiorizada no direito brasileiro, mas com as mesmas características acima extremadas, ou seja, objeto certo e prazo de duração limitado à consecução do objetivo especificamente proposto.
Destarte, a SPE é, de regra, uma limitada formada por determinada Incorporadora e terceiro – muitas vezes agente desta com participação social ínfima – com o prazo de duração determinado à finalização do empreendimento.
Apesar de capital social distinto, objeto exíguo e prazo determinado, tal sociedade é controlada diretamente pela Incorporadora e o não há garantias no sistema da não afetação em caso de falência da principal.
A conveniência existente é meramente para fins de auditoria interna e gestão orçamentária, bem como para apuração dos respectivos saldos de cada empreendimento, além de que evita certidões positivas de feitos ajuizados, requeridas pelos Serviços de Registro de Imóveis, para fins de atendimento ao artigo 32, “b”, da Lei n. 4.591/64, por oportunidade de rogação do processamento da incorporação. Nessa senda, não é visada a segurança do adquirente, não é este o objetivo direto das Incorporadoras que adotam esse eficaz meio de gestão operacional interna.
Salienta-se que grande parte das adeptas nem a apartação de profissionais e seus encargos realiza.  Utiliza-se com a finalidade específica de dotação limitada para cada fase do empreendimento, bem como para melhor análise de resultado de equipes.
Frisa-se que não constituem tipo societário autônomo, apesar da divergência pontal de Hentz (2005), mas apenas denominação diferenciada para a já conhecida sociedade com objeto certo e prazo de duração determinado à consecução do objetivo previsto.

3.2. Seguros de término e entrega de obra
De tímida aplicabilidade, esse tipo de seguro na verdade traz ficção para os adquirentes, pois em média o valor de sinistro coberto pela apólice é bem menor que o valor global da obra e somente há cobertura em hipóteses taxativamente elencadas.
Segundo levantamento da Câmara Brasileira de Indústria da Construção – CBIC, os limites fixados pelo mercado segurador são muito pequenos e, em contrapartida, o custo do prêmio chega a 30% (trinta pontos percentuais) do valor da obra, encarecendo o metro quadrado adotado e destituindo a competitividade do mercado.
A ausência de controle das Companhias seguradoras também é outro ponto negativo do sistema, já que situações previstas na apólice como casos para exoneração de responsabilidade de adimplemento do sinistro apenas são diagnosticadas e impostas nas ocasiões de insuficiência de recursos.
Ademais, não há mecanismo para atrelar o valor pago no sinistro para o empreendimento segurado, tal crédito é inevitavelmente arrecadado pela massa falida, em situação desfavorável aos adquirentes que confiavam no instituto.

3.3. Diagnóstico e aconselhamento do setor
A Câmara Brasileira da Indústria da Construção, entidade sediada em Brasília que reúne 62 (sessenta e dois) sindicatos e associações patronais do setor da construção civil em todos os Estados brasileiros e no Distrito Federal, aconselha como novo modelo para adoção em todo o segmento, o Patrimônio de Afetação[1].
Analisa que como principal contra garantia da entrega de obra existirá o empreendimento, apontando os seguintes benefícios:
a) Garantia para o consumidor final;
b) Reativação do mercado de venda “em planta”;
c) Garantia para os agentes financeiros, securitizadores e investidores;
d) Indução à qualidade de construção – empresas com sistema de gestão da qualidade oferecem potencial de risco menor;
e) Fortalecimento das pequenas e médias empresas do setor.
Ademais, o único seguro de término e entrega de obra avalizado pela Câmara condiciona os interessados à adoção do patrimônio de afetação [2].
Apesar de todos os pontos acima serem exaustivamente destacados por juristas e economistas, o peso da indicação de instituição do próprio setor é considerável para fins de alteração legislativa.
Contudo, como já seria previsível, existem divergências teóricas dentro da mesma classe e argumentos em sentido contrário. Nessa linha, o jurista Marcelo Terra externa a seguinte posição:
“A atividade empresarial da incorporação imobiliária a preço fechado sofre uma grande reviravolta, tratando-se de um novo mundo, uma nova cultura. A nova lei trata o incorporador como mero administrador de recursos de terceiros, mas o mantém como o único e exclusivo responsável pelo insucesso do empreendimento. O incorporador perde toda e qualquer liberdade de gestão dos recursos, a escolha do melhor momento de sua utilização, de compra de materiais, de contratação de serviços”. (TERRA, 2007, p. 1 e 3)
Em outro trecho do artigo, continua:
Considerando as claras deficiências do patrimônio de afetação, sob a ótica do incorporador, o empresário somente aderirá a tal regime em uma das circunstâncias abaixo:
a) - se eventual benefício do RET[3] compensar os riscos da gestão e da potencial interferência dos condôminos;
b) - se houver imposição, como condição negocial, para fins de concessão de financiamento à produção;
c) - se houver imposição pelo mercado comprador;
d) - se houver imposição, como condição negocial, para fins de concessão de apólice de seguro-garantia.” (TERRA, 2007, p. 1 e 3)
De antemão pedindo vênia ao insigne advogado, o entendimento acima não merece prosperar. O patrimônio de afetação cria controle, gera a necessidade de contabilidade apartada e de satisfação à Comissão de Representantes, mas de nenhuma forma engessa a atividade do incorporador para a busca de melhores condições orçamentárias e de mercado.
Ademais, colocar como desfavorável a apresentação de balancetes aos adquirentes é a contramão da boa-fé e transparência necessária para qualquer operação consumerista.
Como deveras já exposto, o que se busca com o instituto é segurança jurídica para preservar até mesmo o setor. Como bem demonstra o diagnóstico da Câmara Brasileira da Indústria da Construção, há inegável custo-benefício com a adoção da afetação, mormente pelo claro futuro reflexo na vitalidade do tráfico imobiliário, pois segurança, gera crédito, gera confiabilidade, tudo isso formando um cenário favorável ao objetivo do setor: vendas.

CONCLUSÃO
Apesar de presente no ordenamento jurídico brasileiro desde o ano de 2001, o patrimônio de afetação ainda é instituto jurídico pouco conhecido em suas notáveis vantagens e de insignificante utilização.
Visando a segurança jurídica e econômica, bem como a proteção dos adquirentes imobiliários - notadamente em nosso país pessoas que realizam o sonho da casa própria, o instituto se distanciou do objetivo principal ao positivar a faculdade da adoção.
Mostrou-se que a incorporação é atividade originariamente voltada à afetação natural e cada empreendimento em sua origem é concebido para sobrevivência e lucros às suas próprias forças. No entanto, houve protecionismo legislativo no sentido do liberalismo econômico em detrimento dos adquirentes hipossuficientes e, de certa forma, comprometendo o direito constitucional de moradia.
Não há que se falar também em outros meios capazes a possibilitar a segurança almejada.
As sociedades de propósito específico, bem como os seguros de término e entrega de obra não são aptos a estabelecer garantias aos adquirentes, como muitas vezes é divulgado por parcela do setor imobiliário.
Mostrou-se, também, que em defesa da adoção integral do patrimônio de afetação não se posicionam apenas juristas, mas órgãos representantes da Construção Civil Brasileira, os quais compreendem a necessidade de ajuste total do segmento para impedimento de descréditos generalizados.
Em contrapartida, a posição divergente também fora explanada, todavia os argumentos foram rechaçados diante das impropriedades levantadas.
Conclui-se, na defesa do sistema, que o artigo 9º da Lei n. 10.931/04 é formador de um paradoxo, de forma que distorce as diretrizes concebidas por outros dispositivos.
Ratifica-se que segurança jurídica é avanço, é desenvolvimento e que políticas de gestão devem partir de panoramas mais complexos a médio e longo prazo, situando os custos iniciais com os benefícios vindouros da adoção do instituto. Esse era o posicionamento esperado do setor, contudo infelizmente fora frustrado.
Por fim, ante a baixa utilização do sistema e ausência de compromisso do setor da construção civil brasileira, vislumbra-se que o panorama legislativo em vigor deve ser readequado para obrigatoriedade da utilização do patrimônio de afetação em todas as incorporações brasileiras, em consonância com os projetos iniciais fomentadores da matéria. Lamenta-se que até mesmo a Lei n. 11.977/09, em seu artigo 21, e seus diplomas alteradores permaneceram, data máxima vênia, erroneamente no caminho da discricionariedade da afetação, perdendo excelente oportunidade de condicionamento em virtude da concessão de benefício creditício considerável ao setor (Programa Minha Casa Minha Vida), merecendo, portanto, urgente reforma em tal quesito.

Referências
AGHIARIAN, Hércules. Patrimônio de Afetação. Disponível em: . Elaborado em 09 de 2004. Acesso em 26 de julho de 2012.
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Notas:
[1] Análise disponível em: . Acesso em: 10 de set. 2012.
[3] RET é a sigla adotada no artigo para tratar do regime especial de tributação previsto na legislação. 

Informações Sobre o Autor: Caroline Feliz Sarraf Ferri
Tabeliã de Notas e Registradora Civil em Curitiba – PR, mestranda em Direito pela UFPR (2012), especialista em direito registral imobiliário, notarial, civil, direito público, processual civil e em outras áreas do direito, bacharel em direito pela UFGO (Goiânia, 2006)
Fonte: revista Âmbito Jurídico

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